No dia 31 de janeiro de 1998,
saí de casa bem cedo para dar um passeio comemorativo ao meu aniversário. Seria
um passeio de alguns dias. Eu e a bicicleta. Para fazer um percurso diferente
dos habituais, resolvi ir lá pras bandas de Carutapera, no cantinho do
Maranhão.
Além do material para
manutenção da bicicleta e para dormir (rede, lençol, calça comprida,
repelente e meias), levei água e 800 g
de queijo regional. O queijo já cortado em cubinhos e acondicionado numa vasilha
“Tupperware”.
Saindo de Ananindeua,
os primeiros 60 km até Castanhal apresentaram um trânsito intenso de veículos
(a parte que me incomoda é o barulho). Um dia ensolarado e vento contra. Quando
realizo meus passeios de bicicleta, não paro para almoçar, descansar, etc. As
paradas são bem rápidas, só para beber água,
comer um pouquinho, ou necessidade fisiológica. Ando só “na manha”,
geralmente entre 15 e 18 km/h.
Depois de Castanhal, o
movimento diminuiu. Só o vento é que insistia em me atrapalhar. Depois da encruzilhada Salinas/Capanema, gastei umas
3 horas e pouco para andar uns 40 km com muitas subidas contra o vento.
Chegando a Capanema, mais ou menos 150 km percorridos ainda resolvi ir até Bragança, mais cinqüenta e poucos km.
Nos últimos km, ao anoitecer, encontrei,
um de cada vez, uns 3 ou 4 ciclistas que tinham um facão pendurado no guidão da
bicicleta. Conversei com um deles e ele explicou que estavam indo para o mangal pegar caranguejo
para vender. Era a rotina deles: ir à noitinha ao mangal pegar os caranguejos;
antes de amanhecer, iam à cidade e vendiam na feira e nas ruas; antes do
meio-dia, voltavam para casa descansar e repetir o ciclo novamente.
Minha alimentação neste dia consistiu
nos 800 g de queijo e uma coalhada que comi com farinha num
estabelecimento antes de chegar a Capanema. Em Bragança, ainda fui a uma padaria e comprei uns
biscoitos. Paguei um quarto para dormir no Hotel Juca (5 reais).
Levantei às cinco e pouco
conversei um pouco com a funcionária do
hotel que abriu a porta para eu sair. Comi uns biscoitos e segui viagem, sendo
que atravessei a última esquina da cidade precisamente às seis horas. Estrada
de piçarra, tinha às vezes uns retalhos de asfalto que vi até mais ou menos a entrada para Açaiteua, a
uns 40 km de Bragança. Mais uns 20 km, entrei num povoado chamado Curupaiti.
Fiz uma merenda num mercadinho e segui viagem. Depois de passar algumas
pequenas pontes em sequência, começaram a aparecer algumas subidas.
Encontrei outro ciclista com uma máquina
fotográfica. Disse que era repórter de um jornal de Bragança. Tirou umas fotos
e fez algumas perguntas. Cheguei em Viseu às 14:55, mais ou menos 120 km
pedalados.
Fui até a beira do rio
Gurupi, numa espécie de porto, e soube que para ir a Carutapera, do outro lado,
teria de esperar até o final do dia, quando a maré estaria “cheia”.
Quando viajo de
bicicleta, sempre vou ao banheiro quando levanto e faço minhas necessidades
fisiológicas para ficar resolvido pelo dia inteiro. Curiosamente, neste dia,
quando acordei, ainda lá em Bragança, não saiu nada.... Achei que foi por causa
do queijo que travou tudo. Assim sendo, descobri um vendedor de lanches chamado
Bigode, ali no porto mesmo, que servia abacatada. Pois fiquei lá, esperando a
maré encher e tomando abacatada para melhorar o funcionamento do intestino.
Só consegui atravessar
para Carutapera às 21 horas. No meio da travessia, num caminho de água que ia
por dentro da mata, a luz do barco pifou. O condutor, então, pediu a um colega
para focar com uma lanterna para frente
e para o alto, e lá fomos nós mais uma meia hora até chegar ao porto de
Carutapera.
Desci do barco, e, ali
mesmo, perguntei onde poderia procurar lugar para dormir. Me indicaram um bar
que estava fechado e ali pendurei a rede por cima de uma mesa de bilharito.
Ainda durante a noite fui abordado por policiais, sendo que mostrei meus
documentos e fui convincente com minha história, de modo a continuar dormindo
sossegado.
Acordei às cinco e pouco com o canto da passarinhada.
Ainda escuro, fui a um barranco e fiz a tal necessidade fisiológica. Saí por aquela rua do porto, atravessei a
pequena cidade e saí direto numa estrada de areião, toda cheia de buracos
arredondados e grandes. Estava chovendo fino.
Após pedalar uns 18 ou
20 km, numa encruzilhada onde havia uma casa de madeira, Forquilha, escolhi o
caminho da esquerda e fui em direção a Luís Domingues. A estrada estreita era
só barro. Passei por um povoado chamado
Livramento e tive de empurrar a bicicleta por causa da grande quantidade de
caranguejos que estavam andando no leito da
estrada.Depois de um bocado andando, a estrada acabou numa grande água,
uns 200 metros de largura. Não tinha ponte. Olhei para todos os lados, só água
e mato. Não tinha ninguém para ensinar o caminho. Eu não gosto de voltar. Vi,
então, uma marca de pneu de carro entrando na água. Concluí que talvez não
fosse muito fundo. Entrei na água empurrando a bicicleta no rumo da marca de
pneu. Quando a água encobriu o pneu, olhei para frente e vi uma clareira no mato a menos de
100 metros de distância. Fui naquela direção e a água foi ficando mais rasa.
Não havia correnteza. No outro lado, havia até raízes de árvore no leito da
estrada. Após ter andado uns 10 minutos, veio uma moto CG 125 atrás de mim com
dois rapazes. Perguntei se tinham passado com a moto por dentro da água e eles
confirmaram. Fiquei impressionado de o motor não ter apagado (quando eu era
novo as motos apagavam só por molhar a vela na chuva). Um pouco mais adiante,
passou por mim uma caminhonete com um bocado de gente em cima. Logo depois, entrei em Luís Domingues, uma cidade pequena,
muito antiga, com casas emendadas (típicas construções portuguesas).
Estava me sentindo meio
enjoado, fui a uma farmácia. Comprei um remédio para o fígado e conversei com o
dono da farmácia. Reclamei da precariedade da estrada que passei desde
Carutapera até ali, ao que ele respondeu
que o pior estava me esperando quando fosse
sair para Godofredo Viana.
E era verdade. Num dia
de chuva, um estrada recém-patrolada, só
barro. A bicicleta andava menos de 15 metros e trancava as duas rodas. Tinha eu
que tirar o barro a todo minuto. Gastei umas duas horas para andar uns 5 km. Depois,
peguei uns trechos menos ruins. Passei
por Godofredo Viana, outra cidade pequena, e fui até Cândido Mendes, por uma
estrada “normal”, de piçarra. Chegando lá, dei uma andada pela cidade, era mais
ou menos meio-dia. Fui até uma praça e tomei um mingau que uma senhora estava
vendendo lá, na beira do rio. Conversei um bocado com ela. Ela disse que eu
poderia subir num barco e ir pelo rio uns 6 km e sair no outro lado na estrada
que ia para Turiaçu. Mas eu achei que esta opção iria espichar muito o meu
passeio. Me despedi da senhora do mingau, saí pelo mesmo caminho que entrei, e
fui até um povoado chamado Manaus, onde,
já estando refeito do enjôo, comprei uns biscoitos e tomei umas abacatadas num
mercadinho. Segui no rumo de Gurupi, na divisa PA/MA. A chuvinha continuava. A
estrada, o mesmo tipo daquela que vi quando saí de Carutapera: areião, cheia de
crateras, só que agora tinha mais subidas e descidas, embora pequenas. Eu teria
de andar perto de 40 km antes de escurecer. Passei por um outro povoado, Amapá,
e nem parei. Na beira da estrada, só fazendas. Cheguei à BR-316, num povoado chamado Quatro Bocas,
uns 10 minutos depois de escurecer. Daí, mais 24 km de bom asfalto com
acostamento e com a luz dos caminhões cheguei a Gurupi e entrei num grande
posto de gasolina (Pombal). Fiz uma merenda e fui até perto da ponte perguntar
onde poderia alugar um quarto para dormir. Me indicaram um hotel que ficava na
beira do rio, descendo o barranco, na cabeceira da ponte.
O hotel era uma grande
casa de madeira. Estava escuro. Falei com um senhor que estava lá e ele me
conduziu até um quarto com uma lanterna. Se precisasse luz, era só acender a
vela. Paguei 5 reais. Arrumei a rede e dormi. Durante toda a noite senti um
cheiro de cocô.
Levantei às 4:30. Pretendia
chegar o mais próximo de casa neste dia, sendo que faltavam 278 km para
terminar o percurso. Falei do cheiro de cocô para o homem do hotel, e ele me
disse que era o cheiro da madeira com a qual o prédio era construído
(Cupiúba?).
Saí às 4:50. Atravessei
a ponte, e, como estivesse muito escuro, fui bem pelo meio da pista,
cantarolando para alertar alguém que por acaso estivesse no meu caminho. Num
determinado lugar, sem eu ver ninguém, alguém perguntou se eu estava vendendo
pão...
O dia amanheceu nublado
e com chuvisco. Gastei 8 horas no sobe-e-desce de 120 km até Capanema. Depois
da Polícia Rodoviária, fiz um lanche no restaurante Chaparral e continuei no
rumo de Belém. Estava andando com os músculos cansados mas com uma grande
disposição que só os atletas de longa distância sabem o que é.
Passei por todos os
lugares do caminho praticamente sem parar, só não me descuidei de beber água, e
às 18 e tanto, passando por Apeú, a 54 km de casa, escureceu. Daí em diante,
tive que andar devagar por causa da luz dos carros que me ofuscava devido ao
grande movimento (acho todas as estradas “BR” têm muito movimento quando estão
próximas de grandes cidades). Na saída da BR para Mosqueiro, Já a 20 km de
casa, parei num posto de gasolina para fazer um lanche. Assisti uma parte de um
jogo amistoso da seleção brasileira contra um time da América Central. Depois,
terminei o meu passeio. Cheguei em casa às 22:15.
Depois desta viagem,
conheci um senhor que me viu passando na
frente da casa dele em Curupaiti e uma senhora que trabalha em Belém e é lá do
povoado Livramento. E um outro senhor que trabalha em Belém falou que a senhora
que vendeu mingau pra mim lá em Cândido Mendes é uma tia dele. Naquele mesmo
ano ou no ano seguinte todas aquelas estradas ruins que passei foram
asfaltadas. A bicicleta que usei? Uma Caloi Barraforte 1980, com 15 marchas.
Bom dia Senhor Lauro Fiss, parabéns pelo relato e conheci Carutapera e Viseu graças a esse relato. Jorge de São Paulo/SP
ResponderExcluirsinto alegria e orgulho por isso.
ResponderExcluir