quarta-feira, 4 de junho de 2014

Viagem Belém-Parnaíba-Natal (parte 2 de 3)

No  quinto  dia,  de  Arari ,  passando  por  Miranda,  entroncamento,  Itapecuru,  João Leite  e  Vargem  Grande,  com  vento  contra,  fraqueza,  virilha   incomodando,  me  superei  e  cheguei  até  a  Placa,  um  povoado  de  meia  dúzia  de  casas,  bem  na  entrada  para  Urbano  Santos,  uns   40  km  antes  de  Chapadinha.  Num  barraco  de  chão de areia,  paredes  de  barro  e  telhado de  palha,  uns 5 m de largura  por  uns  15  de  comprimento,  conversei  com  um  pessoal  que  estava  jogando  dominó  e  pendurei  a  rede  lá  no  fundo.  Quando  acordei,  meia  noite  e  tanto,  estavam,  além  de  mim,   mais  3  pessoas  deitados  em  redes,  esperando  para  pegar  condução   ao  amanhecer.
No  sexto  dia,  sem  ter  o  que   comer   nem  onde  comprar,  saí  no  rumo  de  Chapadinha,  ainda  antes  de  clarear,  e  num  comércio,  a  uns  4  km  antes  da  cidade,  pedi  algo  para  comer.  Me  deram  ovo  frito  com  farinha;  senti  as  minhas  baterias  carregarem  rapidamente.  Fiquei  impressionado.  Depois  de  subir  dois  morrinhos,  fui  a  um  posto  de  gasolina ,  fiz  mais  uma  merenda. 
Seguindo,  a  estrada  ficou  mais  suave  e  o  vento  acalmou.  Passei  Anapuru,  Brejo,  Santa Quitéria.  De Santa Quitéria  para  São  Bernardo,  uns  morrinhos  bem  difíceis.  Cada  um  que  subia, de  coroa  28  e  fazendo  zigue-zague,  eu  ficava  ofegante.  Quando  entrei  na  cidade, ao  descer  o  último  morro,  sentei  numa  calçada  alta,  ao  lado  da  Delegacia  de  Polícia,  e  contei  o  tempo  até   ficar   com  a   respiração  normal:  14 minutos!
Ganhei  dois  pedações  de  bolo  + café com leite  numa  casa  do  outro  lado  da rua.  Me  senti  animado  e  andei  mais  uns  30  km  até  um  posto  de  gasolina (Mamorana),  onde  ganhei  janta,  tomei  banho,  e  pendurei  a  rede  para  dormir.  Fui  tão  bem  tratado  que  quase   encabulei.
No sétimo  dia,  fui  até  Parnaíba.  Dei  umas  voltas  pela  cidade,  procurei  por  um  tal  de  Carlinhos  que  era  primo  de  um  outro  Carlos,  de  Belém.  Lá  pelas  5  da  tarde,  já  anoitecendo,  numa  praça  no  centro,  conversando  com  uns  motoristas  de táxi,  havia  uns insetos  dando  umas   ¨mordidas¨ dolorosas.  Perguntei  o  que  era  e  disseram  que  eram muriçocas.  Ao  perguntarem  se  não  havia  em  Belém,  respondi  que   eu  nunca  tinha  encontrado  em  nenhum  dos  quase  20  Estados  onde  já  passei  de  bicicleta.
Os  taxistas  conheciam  o  Carlinhos  que  eu  procurava  e  me  ensinaram  onde  ele morava, próximo  a  uma  lanchonete  onde  todos  o  conheciam.  Já  no  escuro,  achei   a  casa  que  o  pessoal  da  lanchonete  indicou.  Lá  chegando,  haviam  uma  senhora  e  uma  moça, e  disseram  que  o  Carlinhos   estava  morando  lá  na  praia  do  Coqueiro,  a  uns  10  km.
Deixei  lá  o  recado  do  outro  Carlos,  e  sem  ter  onde  dormir,  fui  para  a  BR  e voltei  6  km  até  um  posto  de  gasolina,  onde  costumo  me  sentir  em  casa.  Dormi  debaixo  de  uma carreta,  onde  não  havia  muriçocas,  só  mariposas  que  não  mordiam,  só  gostavam  de  luz...  (dois  anos  depois,  numa  outra  viagem,  em  Tubarão=SC,  encontrei  as  tais  muriçocas  e  descobri  que  elas  não  respeitam  repelente.)
No oitavo  dia,   saí  do  posto  e  encontrei  muitos  ciclistas  no  acostamento  durante  os  6  km  até  Parnaíba (acho  que  estavam  indo  para  o  trabalho).  Depois,  segui  no  rumo  de  Chaval-CE.  A  estrada  ficou  mais  estreita,  com  alguns  trechos  esburacados,  mas  nada  que  dificultasse  uma  bicicleta  andando  a  impressionantes  15 km\hora...  Num  povoado  onde  havia  uma  saída  para  Luís  Correa,  pedi  algo  para  comer  numa  casa.  Não  lembro  o  que  ganhei,  mas  fui  convidado  insistentemente  para  ficar  lá  por  uns  dias,  pois  eles   costumavam  hospedar  viajantes  e  gostavam  muito  disto.  Expliquei  que  minha  viagem  tinha   um  tempo  limitado ,  agradeci  a  oferta  e  segui.  Quando  passei  a  fronteira  Piauí\Ceará,  o   asfalto,  mesmo  sem  buracos,  ficou  bem  aspero.  Asfalto  primário, informava  uma  placa.  Chegando  em  Chaval,  um  cidade  pequena,  numa  rua  com  calçamento  de  pedras  irregulares,  pedi  algo   para  comer  numa  residência.  Uma  senhora  idosa  e  seu  neto  me  serviram  um  lanche  e  disseram  admirarem  a  minha  coragem  e  se  ofereceram  para  me  ajudar  em  mais  alguma  coisa  se  necessário.  Era  muita  mordomia  para  o  meu  padrão.  Seguindo  viagem,  o  vento  começou  a  se  opor  com  mais  intensidade.  Em  Barroquinha,  já  na  saída,  entrei  num  restaurante  à  beira  da  estrada  e  pedi  para  encherem  minha  garrafa  com  água. 
Saindo  da  cidadezinha,  fazendo  muita  força  contra  o  vento, andei  uns  2  km  em  10  minutos.  Um  carro  encostou  ao  meu  lado  e  um  casal  me  convidou  para  voltar   e   almoçar  lá  no  restaurante.  Eles  estavam  lá  numa  mesa  e  ficaram  curiosos.Aceitei  o  convite  e  voltei.  Comecei  a  comer.  Primeiro  a  salada.  A  mulher  perguntou  se  eu  ia  comer  só  salada e  eu  respondi: ¨na  minha  barriga  tem  uma  gaveta  para  cada  tipo  de  comida...¨,  ao  que   ela  respondeu: ¨na  minha  também,  mas  eu  como  tudo  misturado  e  um separador  coloca  cada  tipo  na  sua  gaveta  correspondente...¨.  Era  um  casal  de  paulistas,  trabalhavam  com  informática,  e  estavam  viajando  de  férias.  Muito  bem  humorados,  o   homem  disse  que,  no  trecho  de  Teresina  até  Piripiri,  havia  tantos  buracos  no  leito  da  pista  que  havia  fila  de  espera  dos  dois  lados.
Depois  do  almoço,   retornei  à  minha  luta  contra  o  vento.  Estava  andando,  com  dificuldade,  a  10 km\hora,  tal  a  força  do  vento.  Já  faltando  uns  10  km  para  a  entrada  de  Camocim,  encontrei  um  rapaz  de  uns  25  anos  entrando no  acostamento  carregando  3  sacos  de  carvão  numa  bicicleta  Monark  barra  circular.  Conversei  com  ele.  Disse  que  o  carvão  era  o  ganha-pão  dele.  Vinha cedo de  Camocim  e  queimava  madeira  todos  os  dias para  fazer  2  ou  3  sacos  cheios  para  vender  aos  comerciantes.  A  renda,  ínfima,  era  para  sobreviver  com  a  mulher  e  dois  filhos  pequenos.  Na  entrada  para  Camocim  nos  despedi mos.  A  estrada  mudou  de  direção,  90 graus  à  direita,  e  os  24  km  até  Granja,  agora  a  favor  do  vento,   foram  percorridos  em  52  minutos.
Bem  na  entrada  da  cidade,  um  posto  de  gasolina.  Num  caminhão  pequeno  que  não  iria  sair  naquela  noite,  pendurei  a  rede  e  pernoitei. 
No  nono dia, lá  pelas  5  da  manhã,  tive  de  levantar  às  pressas  e  recolher  a  rede.  Havia  começado  a  chover  e  água  estava  escorrendo  pelas  frestas  da  carroceria (sem  carga). Me  serviram  um  lanche  e  segui  viagem.  Atravessei  a  cidade  de  Granja.  As  ruas  eram  calçadas  com  aquelas  pedras  irregulares.  Passei  numa  ponte  e  saí  por  uma   estrada  de   piçarra  bem  ruim,  sendo  que  em  algumas  partes    andei  por  caminhos  alternativos  ao  lado  da  estrada.  Mais  uns  poucos  km, entrei  num  povoado  e  perguntei  qual  o  caminho  para  Marco,  a  cidade  onde  eu  pretendia  chegar  naquele  dia. 
Me  disseram  que  o  mais  curto  era  ¨por  dentro¨,  e  indicaram  seguir  reto  no  final   daquela  rua  à  direita.  E  lá  fui  eu.  Já  na  saída  do  povoado,  uns  500m  de  areal.  E  assim  foi  durante  quase  todo  o dia.  Alguns  trechos  de  piçarra,  maioria  trechos  de  areal.  Muitas  encruzilhadas,  nenhuma  placa,  às  vezes  ninguém  para  perguntar ¨pra  que  lado...¨.  Nas  horas  próximas  ao  meio-dia,  a  areia  clara  ofuscava  a  vista  e  fritava  os  pés. Lembro  que  passei  por  cima  de  uma  pequena  ponte  de  pedra  do  tempo  do  Império,  e  também  por  dentro  de  uma  fazenda,  sendo  que  fui  orientado  a  fechar  as  duas  porteiras  pelas  quais  eu  passaria. 
Depois  das  duas  porteiras,  encontrei  uma  casinha  de  madeira.  O  homem  da  casa  me  ensinou  o  caminho  até   a  próxima  casa,  sendo  que  tomei  nota  dos  detalhes  para  não  me  perder.  Ele  disse  que  depois  da  próxima  casa  eu  não  encontraria  mais  ninguém  para  ensinar  o  caminho!  Percorri  o  caminho  e  vi  a  casa  que  indicada  no  alto  de  um  morrinho.  Subi  lá  empurrando  a  bicicleta.  Conversei  um  pouco  com  o pessoal  da  casa. O  homem  disse  que  pescava  para  viver,  num  açude  ali  perto,  e que,  embora  o  mar  ficasse  perto  da  casa  dele,  nunca  precisou  e  nunca  teve  vontade  de  ir  lá.  Perguntou  se  eu  queria  comer  alguma  coisa  e  eu  disse  que  sim.  A  mulher  dele  trouxe  dois  ovos  cozidos.  Fui  quebrar  um  deles,  mas  estava  mais  duro  que  o  normal.  O  homem  disse  que  era  ovo   de  capote , e  que  a  casca  é  mais  resistente  que  o  ovo  de  galinha.   Após  comer  os  ovos  e  encher  a  garrafa  de  água,  ele  me   ensinou  o  caminho  até  o  lugar  onde  eu  deveria  subir  um  barranco  e  entrar  na  BR.  A  BR era  uma  estrada  que   ligaria  a  cidade  do  Marco  à   estrada  de  Camocim,  mas,  diante  das  dificuldades  em  uma  região  de  baixada,  a  obra  foi  abandonada.
Chegando  na  tal  BR,  uma  estrada  de  piçarra,  andei  mais  uns  20  km  e  cheguei  a  Marco  na  boca  da  noite.  Peguei  a  esquerda   e  entrei  num  posto  de  gasolina  dentro  da  cidade.  Perguntei  se  podia  pernoitar  por  lá.  Um  funcionário  do  posto  me  conduziu  à  sua  residência,  nos  fundos  do  posto.  A  mulher  dele  preparou  um  prato  de  comida.  Pendurei  a  rede  na  cozinha  mesmo  e  lá  dormi. 
Décimo  dia.  Tomamos  café  bem   cedinho.  O  funcionário  do  posto  foi  trabalhar  e  eu  segui  viagem.  Logo  senti  a  bicicleta  leve  e  percebi  que  o  vento  estava  a  favor,  meio em  diagonal.  Asfalto  bom,  pouquíssimo  movimento.  Na  entrada de  Amontada,  antes  daquela  subida,  pedi  algo  para  comer  num  comércio  e  ganhei  um  bocado  de  bananas.  Estavam  muito  maduras.  Eram  muitas  e  eu  não  poderia  levar  adiante  pois  virariam  mingau.  Diante  da  insistência  do comerciante,  levei-as  até  o  alto  da  subida,  comi  o  máximo  que  pude,  umas  15,  e  dei   o  restante  para  dois  meninos  que  estavam  passando  por  ali.
Depois,  já  pela  tarde,  passei  em  Itapipoca,  uma  cidade  maior  que  as  outras. ¨A Cidade dos Três Climas¨.  Quase  na  saída,  ganhei  um  pacote  de  bolachas.  Seguindo  viagem,  passei  pela  entrada  para  Uruburetama  e,  mais  adiante,  parei  num  posto  da  polícia  rodoviária.  Conversei  um  pouco  com  os  guardas  que  ficaram  curiosos  e  ganhei  um  litro  de  leite  longa vida.  Já  escurecendo,  atravessei  ainda  Umirim  e,  lá  na  saída,  dormi  ao  lado  de  um  restaurante  onde  mais  de  20  pessoas  dormiram  também com suas redes  penduradas  num  espaço  aparentemente  destinado  para  ser  este  dormitório  ¨coletivo¨.

Décimo  primeiro dia.  Assim  que  pude  ver  o  chão,  segui  viagem.  Passei  por  São  Luís  do  Curu,  Croatá,  Primavera.   Só  parei  para  merendas  mínimas  e  rápidas.  Novamente   enfrentei  um  forte  vento  contrário  até  a  entrada  de  Fortaleza,  no  km  15.  Do  15,  onde  é  o  cruzamento  com  a  BR  que  vem  de  Brasília  (BR 020),  evitei  o  trânsito  mais  intenso  da  cidade  e  segui  pelo  anel  viário,  saindo  em  Messejana. Depois,  Eusébio,  e,  na  saída   de  Aquiraz,  parei  num  posto  de  gasolina,  onde  tratei  de  me  alimentar  e  pendurar  a   rede  para  dormir.

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